Derrida, por um outro Iluminismo


Pesquisadores brasileiros e estrangeiros se reúnem de segunda a sexta-feira no Rio para cinco dias dedicados à obra de Jacques Derrida. O I Colóquio Internacional Desconstrução, Linguagem e Alteridade: Heranças de Derrida, organizado por Carla Rodrigues e Rafael Haddock-Lobo e que será realizado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, no Largo de São Francisco, começa às 16h de segunda-feira com a exibição do filme “D’Ailleurs Derrida”, de Safaa Fathy, seguido pela conferência “Não há desconstrução sem democracia — não há democracia sem desconstrução”, da filósofa portuguesa Fernanda Bernardo, da Universidade de Coimbra (leia entrevista abaixo). De terça em diante, o evento terá comunicações de pós-graduandos pela manhã e debates entre pesquisadores a partir das 14h. A mesa de encerramento, às 18h de sexta-feira, reunirá a professora da USP Olgária Matos e Mónica Cragnolini, da Universidade de Buenos Aires.

Por Carla Rodrigues e Rafael Haddock-Lobo*

"Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza”. Desde que Kant formulou seu imperativo categórico, ainda no século XVIII, para fundamentar sua filosofia moral, somos, direta ou indiretamente, ordenados por uma tradição ética e política orientada pela autonomia do sujeito racional de Kant, para quem “mesmo o mais vulgar dos homens” tem acesso à lei da razão e a capacidade de, a partir de um eu consciente e racional, chegar a uma proposição universal. Desde então o debate sobre ética tem Kant como referência, seja para contestá-lo, como fez Nietzsche, para aprimorá-lo, como quis Jürgen Habermas, para alargá-lo, como pretendeu Hannah Arendt no seu “Lições da filosofia política de Kant”, ou para radicalizá-lo, como fez Jacques Derrida.

Nessa linhagem de herdeiros do Pensamento Crítico destaca-se Habermas, cuja obra nasce na segunda metade do século XX declaradamente não apenas inspirada em Kant, como também em contraposição a Nietzsche. Pensador da ética do discurso e da ação comunicativa, Habermas pretende ampliar as proposições kantianas, que partiam de um monólogo do sujeito autônomo com sua própria razão, para pensar num diálogo no qual os participantes, desde que comprometidos com a ética do discurso, podem alcançar posições universalizáveis e de consenso aceitáveis a todos os participantes.

No livro mais importante que dedicou a Nietzsche, Gilles Deleuze defende a hipótese de que “A genealogia da moral” foi escrita para enfrentar o “chinês de Königsberg” — para usar a expressão sarcástica com a qual Nietzsche se referia a Kant — e se contrapor à “Crítica da razão pura”. Entre os herdeiros de Nietzsche, inclusive no que diz respeito ao enfrentamento das proposições kantianas sobre liberdade, autonomia e universalidade da razão, está o fi$ósofo franco-argelino Jacques Derrida. O martelo nietzscheano deixa à desconstrução alguns legados: o reconhecimento de que o sentido se dá sempre por um ato de força; a ampliação das aspas com as quais Nietzsche suspende a verdade, aspas que em Derrida suspendem todos os conceitos filosóficos; e a interrogação sobre as exigências morais do cristianismo e do kantismo, que em Nietzsche são sinônimos.

Parece tentador, embora seja uma solução simplista, tentar $Habermas e Derrida, sendo o primeiro um continuador do ideal iluminista kantiano e o segundo um anti-iluminista e, portanto, contrário a todas as formulações de Kant. Enquanto em Habermas há um grande esforço de encontrar procedimentos seguros para que se alcance o melhor arranjo possível, em Derrida esse melhor arranjo possível é um horizonte, uma perspectiva nunca alcançável, ou o que ele chama de “porvir”. Nos dois está em debate a relação com o outro, a justiça, a de$e a ética. Em Derrida, a ética será sempre pensada em sua relação com a alteridade, não sendo nem normativa ou deontológica, como queria Kant, nem processual, como defende Habermas. A radicalização da leitura kantiana proposta por Derrida, em contraste com a leitura proposta por Habermas, consistiria num esforço para se pensar o outro como outro, ter a alteridade como limite e desejo da própria ética, afastando-se de qualquer tentativa de inclusão, que poderia ser pensada apenas $a própria perda da alteridade, quando o outro passa a ser incorporado pela ordem do mesmo.


Quando esteve no Brasil pela última vez, em 2004, pouco mais de um mês antes de sua morte, Derrida pareceu deixar esta diferença bem marcada, ao declarar que, apesar de ter assinado um texto ao lado de Habermas, ou seja, de estar em uma ou outra posição política ao lado de Habermas, não deveríamos esquecer que ele era seu “inimigo”. O termo “inimigo” pode parecer forte demais, mas se lembrarmos que neste momento Derrida lia Carl Schmitt, importantíssimo jurista filósofo político alemão, podemos entender que as heranças de Nietzsche e Schmitt não servem a Derrida para descartar Kant, mas para apontar as insuficiências da universalidade e das condicionalidades kantianas, e assim combater certa leitura kantiana predominante no panorama jurídico-político de nossos tempos, sobretudo pelas leituras neoliberais de John Rawls e Habermas.

Se Habermas é o inimigo, podemos supor então que Kant é o campo de batalha, o território que se luta para conquistar em nome justamente de outras leituras possíveis de Kant, um alargamento da própria mensagem kantiana. Não mais uma hospitalidade condicionada, por exemplo, como nos exigem as políti$internacionais, mas uma hospitalidade incondicional (inspirada na noção levinasiana de acolhimento); não mais um sujeito autônomo, que tem em sua razão a única condição de liberdade, mas sim um sujeito heterocausado, atravessado por tantas alteridades, mas ainda (o que é importante sublinhar) responsável por suas escolhas. Um sujeito que não deve agir meramente segundo o dever, segundo a regra, pois isso sim seria irresponsável, fora da ordem da decisão, mas um sujeito responsável justo por decidir sobre a regra. E uma justiça que não se fundamente apenas na regra, na rigidez da regra, mas que seja ela mesma a regulação da regra, e que traga ao direito a urgência da invenção do legislador frente à singularidade daquele que está diante da lei.

Isto seria, para Derrida, à luz de todos esses espectros, seu “outro iluminismo”, ou, como ele mesmo propõe, uma luta por “mais luzes”.

CARLA RODRIGUES é professora do Departamento de Comunicação da PUC-Rio e RAFAEL HADDOCK LOBO é professor do Departamento de Filosofia da UFRJ . São coordenadores do KHORA — Laboratório de Filosofias da Alteridade e ambos defenderam seu doutorado em Filosofia na PUC-Rio, sob orientação de Paulo Cesar Duque-Estrada, precursor dos estudos filosóficos de Derrida no Brasil

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